Vinil Vários Artistas - Tropicalia Ou Panis Et Circencis (LP Verde)
Lançado em 1968, o disco-manifesto de um dos movimentos culturais mais originais do século 20 segue relevante como nunca. Mas “Tropicália ou Panis et Circensis” não é obra a ser admirada apenas como monumento histórico. Trata-se de um grande disco com ideias musicais e arranjos surpreeendentes, grandes canções, sacadas de repertório e interpretações memoráveis.
Obra coletiva, tem assinatura personalíssima, traçada por dois baianos na faixa dos 25 anos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, junto com o maestro Rogério Duprat (carioca radicado em São Paulo, então com 32 anos), autor de todos os arranjos. Um triunfo que nunca seria o mesmo sem a contribuição de um grupo paulistano superjovem chamado Os Mutantes — Rita Lee tinha 20 anos, Arnaldo Baptista, 19, e Sérgio Dias, 17 —, presente em cinco das doze faixas.
Gravado em maio de 1968, o disco já nasceu transgressor, como um LP todo amarrado conceitualmente, a partir de um roteiro cinematográfico. Com direito a colagens sonoras e efeitos de sonoplastia, como o “Sgt. Pepper’s” dos Beatles. Caetano, Gil, Duprat e o produtor Manoel Barenbein gravaram em quatro canais, como os rapazes de Liverpool. E, se tiveram muito menos tempo (quatro semanas) e recursos, contaram com a contribuição milionária de Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão, além dos Mutantes — e também de momentos iluminados de dois jovens poetas.
O baiano José Carlos Capinan, parceiro de Gil na faixa de abertura, “Miserere Nobis” (“tenha piedade de nós”, em latim), deixa claro que aquela revolução pop e colorida era também revolucionária. As referências católicas da letra ensanduicham a fome do Brasil profundo entre fatias de religião e de opressão. “Miserere...” é uma prece ácida para um país que rima com fuzil e que vive sob a mira dos canhões, como fica explícito ao fim da gravação.
Mas coube ao piauiense Torquato Neto (1944-1972) lapidar o manifesto prenunciado por “Tropicália”, a canção. “Geléia Geral”, escrita com Gil, usa a expressão do poeta Décio Pignatari (1927-2012), autor da frase “na geleia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”, e extrai do cantor baiano um grande momento. O mocotó de Gil enumera referências pop (concurso de miss) e populares (carne seca na janela), com estocadas contundentes (“brutalidade jardim”) e uma citação do “Manifesto Antropófago” lançado pelo escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954) em 1928: “a alegria é a prova dos nove”. Assim fica explícita a filiação maior do tropicalismo, traduzida também na mistura entre bumba-meu-boi e iê-iê-iê.
“Parque Industrial” apresenta ao planeta a novidade Tom Zé (autor da música), junto a Gil, Caetano, Gal e os Mutantes. Nela, Duprat apronta mais ainda nas intervenções orquestrais, jogando “Hino Nacional” e jingle de Melhoral na mistura. O experimentalismo e a irreverência pop do maestro atingem níveis ainda mais altos na lapidar “Panis et Circensis”, com os Mutantes ambientados em meio a “pessoas na sala de jantar”, uma gravação cultuada mundialmente há mais de três décadas.
O hit do álbum, porém, seria outra obra-prima, simploriamente pop, lançada como single em julho: “Baby”, perfeita na voz de Gal Costa, apesar de originalmente escrita para Maria Bethânia. A estrela de Gal também luz no momento mais puramente lírico do LP: “Mamãe, Coragem”, parceria de Torquato com Caetano.
Há mais de vinte anos, “Tropicália ou Panis et Circensis” figura no top 10 de todas as enquetes e eleições sobre os melhores discos brasileiros de todos os tempos. Para entender os motivos, basta ouvir. Pedro Só
Repertório do LP:
Lado A:
1. Miserere Nobis
2. Coração Materno
3. Panis et Circencis
4. Lindonéia
5. Parque Industrial
6. Geléia Geral
Lado B:
1. Baby
2. Três Caravelas
3. Enquanto seu Lobo Não Vem
4. Mamãe Coragem
5. Bat Macumba
6. Hino ao Senhor do Bonfim